Estou tão feliz!
Há séculos, desde a estréia desse blog, peço aos meus amigos - meus leitores - que mandem colaborações para A Boca: críticas de lugares que foram, histórias de culinária da família, enfim, tudo o que está acerca desse espaço dedicado aos prazeres da gastronomia.
Enfim, recebi a primeira colaboração, de um amigo querido, Alexandre!
Ganhei uma bronquinha no comentário do último post e aí fui checar meu email. Não estava na caixa de entrada, por isso demorei a ver o email que ele mandou, tão carinhoso e bem escrito, como era de se esperar dele. O cara faz tudo no capricho , até fotos me mandou.
Ele escreve sobre uma história que já havia me contado, num almoço de trabalho, que eu adorei saber e com a qual me identifiquei muito. Aqueles pratos de família que reúnem todos em torno da preparação. É uma festa! Na minha família também fazemos muito isso: é o festival do milho no início do ano, a pizzada, o molho da feijoada de aniversário do meu pai (eu contei como é isso na minha casa e daí sugiu a história que eu publico abaixo - qq dia, dou a receita desse molho da minha mãe), as comidas do Natal, etc.
Vale MUITO a pena ler. É sobre o caruru da família Almeida Santos. Eu como boa baiana enrustida, amei!
Divirta-se! E comente depois! Com vcs, Alexandre:
"Toda família tem seus hits gastronômicos – aquele suflê que só a mamãe faz tão bem, o bolo de chocolate da titia, o cozido da vovó, o peixe assado que o papai só faz no Natal. São referências saborosas e aromáticas que nos acompanham por boa parte da vida, capazes de resgatar recordações gostosas e de nos proporcionar alegria, sensação de acolhimento e de pertencimento a um grupo, emoções que não conseguimos traduzir em palavras. Isso já é muita coisa, mas há pratos que vão bem além disso. Eu me refiro àquela receita que não é apenas uma tradição familiar, mas uma instituição sólida, cujo preparo mobiliza toda a família, com o poder de unir, de atrair parentes que moram longe, de aniquilar qualquer desavença doméstica. Nem toda família tem essa comida-evento. A minha, felizmente, tem. E ela se chama caruru.
Lá em casa, a tradição do caruru começou com minha falecida avó sergipana, muito antes de eu nascer, e tem sido continuada pela minha mãe. De tão trabalhoso, o prato é preparado apenas uma vez no ano, para o almoço do Sábado de Aleluia. É feito a muitas mãos, quantas estiverem disponíveis, levando até três dias para ficar pronto. É um verdadeiro mutirão familiar, que reforça nossos laços e resulta em momentos de inigualável êxtase para o paladar e o olfato.
Caruru nem precisa dar tanto trabalho.
Acontece que o caruru da minha família não é um caruru qualquer.
Para início de conversa, a receita pede seis quilos de quiabo, para dar conta de deliciar tantos parentes e familiares atraídos pelo feitiço do prato. Todo esse quiabo tem que ser picadinho, bem pequenininho. Mas tem que picar manualmente, com a faca. Triturar no processador não dá certo, porque o quiabo vira uma gosma e a receita vai por água abaixo. Picar seis quilos de quiabo leva um dia inteiro. É o início do ritual: quatro ou cinco pessoas que se amam põem-se a conversar longamente em torno de uma mesa, enquanto fazem cortes verticais e horizontais em centenas de quiabos, até encher um grande caldeirão.
Depois vêm os seis quilos (ou mais) de camarão, que precisam ser limpos e descascados. Não é pouca coisa.
Mas o mais difícil talvez seja a confecção do leite de coco. Isso mesmo: não usamos aquele leite de coco vendido em garrafinhas. Preferimos extrair o leite de forma artesanal. Por quê? Porque não é a mesma coisa. O sabor é outro. Vários cocos secos são comprados, quebrados, retirados da casca e ralados bem fininhos. Feito isso, o coco ralado é banhado em água fervente sobre uma grande peneira e espremido com as mãos, para que o caldo branco, espesso e gorduroso escorra.
O processo é repetido algumas vezes, até o coco ralado virar bagaço e obtermos um panelão de leite.
O tempero é uma alquimia exótica que só minha mãe sabe fazer da maneira "certa". Inclui castanha de caju, amendoim salgado, gengibre, coentro, pimenta do reino, a casca triturada do camarão e azeite de dendê. Cada item é levado ao caldeirão no momento certo. O cozimento demora horas.
E o aroma? Meu Deus! O aroma é construído aos poucos. Começa com um reles cheiro de quiabo cru e vai se transformando. Passa pelo odor marítimo de camarão, se mistura com o aroma doce de castanha e coco, arde com as especiarias e termina em uma apoteose olfativa torturante e prazerosa regada a dendê.
O acompanhamento perfeito é arroz branco. E mais nada. Porque nada pode ofuscar o sabor dessa preciosidade. Apesar de que o almoço do Sábado de Aleluia, lá em casa, também é feito de bacalhau ensopado e feijão de leite de coco. Por isso que a Semana Santa é para mim tão importante quanto o Natal."
Alexandre
Um comentário:
Que linda! Obrigado, Lu!
Agora me tira do lixo eletrônico, tá? rs
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